domingo, julho 30, 2006

Resgate Cármico II



No processo de resgate cármico no qual me encontro, que é o de depender do sistema de transporte coletivo de Salvador, acontecem umas coisas que posso dizer, com um misto de vergonha e espanto, me encantam e me divertem. Estas coisas, obviamente, tem a ver com o povo baiano. Eu admiro esse povo pelo seu desprendimento, capacidade de adaptação, coragem, otimismo, bom humor, e uma certa cara de pau. Gosto e muito de fazer parte dele (exceto pela mania que algumas pessoas têm de colocar som alto e obrigar a vizinhança a compartilhar o mau gosto com eles . Sim, porque só bota som alto quem tem mau-gosto).
Hoje, tive que tomar dois ônibus para fazer um trajeto que faria normalmente em 20 minutos se estivesse de carro. Mas carma é carma e não tinha uma linha de busu, como são chamados pelos estudantes, que me levasse direto para o meu destino.
Isso tudo é só para contar que durante a viagementraram cinco ambulantes: três baleiros, uma vendedora de sachê, e um vendedor de canetas. Discursos na ponta da língua, clareza e objetividade, eles foram ótimos. Apesar dos meus triglicérides altos comprei umas balas bem doces, porque de amargo bastam os problemas da vida, e também para dar uma força ao vendedor que entrou bem arrumado, de calça e camisa social, sapatos e meias, com três sacos de balas nas mãos. Achei que ele era muito caprichoso e mereceia estar empregado numa loja legal.
Depois dele, entraram outros dois vendendo a mesma marca de bala, com mais variedade, porém menos estilo.
A moça do sachê, cabelos presos com presilhas, vestida com simplicidade, mas decentemente, fez um discurso simpático e no final, agradecendo com um sorriso, desejou a todos uma boa viagem. "Daria uma excelente aeromoça", pensei com meus botõezinhos de madrepérola.
Quase o ônibus inteiro comprou o sachê que ela oferecia a R$0,30.
Pensei em como o baiano gosta de cheirar bem. Deve ser herança dos nossos antepassados indígenas e africanos. Os índios não podiam ver água, e os africanos adoravam cheirar bem, tanto que trouxeram para nós os banhos de cheiro, feitos com plantas aromáticas.
Por último entrou o vendedor de caneta, com um olho vazado e riso gaiato. Anunciou suas canetas do Canadá, de três cores, prometeu dois meses de garantia, a quem o achasse se a caneta falhasse, e contou o caso de uma vizinha que comprou por R$1 uma caneta diferente da sua. “Ela colocou a caneta na bolsa, a caneta explodiu, acabou com os documentos, carteira de identidade, e com o celular. Era uma caneta do Iraque e ela não sabia”, informou.
Não segurei o riso, e ele me olhou agradecido já que ninguém parecia ter entendido a piada.
Bom, essa entrada de ambulantes em ônibus é normal. A depender do trajeto entram até uns 10. Haja resgate cármico nesse trabalho de resultado incerto .
E assim, eu acabei lembrando que o presidente Lula prometeu criar 10 milhões de empregos nesse seu mandato que já está acabando. Será que ele conta como emprego essa atividade dos nossos ambulantes?
Pensei em perguntar a minhas amigas Kátia e Mariinha, que se recusam a conversar comigo sobre o PT , com o argumento de que devemos manter incólume nossa velha amizade.
Ta bom. É melhor mesmo não falar sobe o tema.
Afinal, Lula passará. ..
Daqui a uns 20 anos a gente conversa sobre o assunto.
Se Deus quiser.

Um comentário:

  1. Anônimo7:04 PM

    Aurora, que comentario fazer ?
    Além de enxuto o texto me toca pela representação carinhosa que faz dos vendedores desse ônibus "carmico". De inicio parece que você se põe em cena mas no fundo o que sobressai é não so o seu amor profundo pelo popular, no sentido nobre do termo, mas também a admiração pela luta, pelo trabalho e pelo humor do baiano.

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