sexta-feira, dezembro 19, 2008

Barack Obama: Contemporaneidade e Relações Raciais


O texto é grande, mas acho que vale a pena ser lido. Foi escrito pela amiga Lúcia Correia Lima e publicado no jornal A Tarde um pouco antes das eleições norte-americanas. Lúcia comenta, de uma maneira clara e coerente a questão do problema racial nos EUA e no Brasil, semelhanças e diferenças, sem maniqueísmos nem rancores, mas com o pragmatismo dos que lutam por mudanças e não pela perpetuação ou ampliação do sofrimento. Gostei e estou publicando para vocês com a autorização da autora.


"O jornalista John Carlin, repórter do espanhol El País, com uma simplicidade que me faz lembrar uma brincadeira dos ingleses, que brinca com a palavra miss, (senhorita), transformando-a em uma sigla, que quer dizer: “Make it simple, stupid”, ou seja: faça a coisa simples, estúpido, reúne na matéria “A Cor de Obama nos desafia”, informações antropológicas, históricas e sociológicas, que nos fazem entender a questão, que o mestiço norte americano enfrenta em seu caminho para a Casa Branca, diante dos afro-americanos; com semelhanças, mas, fundamentais diferenças dos afro-brasileiros.

Na matéria de página inteira, publicada recentemente no jornal A Tarde, o repórter nos mostra os abismos entre os afro-americanos, que são descendentes da cruel escravidão, e a nova geração de descendentes africanos que “se instalaram na terra das oportunidades de maneira voluntária, atraídos pela possibilidade de uma vida melhor. E disso nasce aquele otimismo fresco, às vezes ingênuo, que segue definindo a American Way of Life.”.

Obama, não é descendente de escravos, e nasce de uma mãe bem branquinha e corajosa, ao se casar com um africano, em um Estado, em que uniões entre brancos e negros eram proibidos por lei. Depois, tão corajosa quanto, se casou novamente com um oriental, que obviamente colaborou na educação, daquele que segmentos menos conservadores no mundo, torcem, para que seja o próximo presidente dos Estados Unidos.

Temos simpatia por Obama, embora ele, como todos os mortais, tenha equívocos; e já está completamente equivocado quando disse em um dos seus discursos de campanha, que “a Amazônia é internacional”. Se assim o for, quero voltar para New York sem visto, apenas com minha identidade da FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas), que, com lei federal nos fornece o mesmo documento emitido pelas Secretarias de Seguranças.

Lendo naquele sereno domingo o matutino baiano, lembrei-me do dia em que as torres, símbolos do poder econômico americano, estavam tragicamente sendo derretidas, por ações terroristas. Acontecia naqueles 11 de setembro em Salvador, um encontro internacional de capoeira angola. A arte afro-brasileira, que me encantou desde jovem.

Hospedavam-se em minha casa, quatro capoeiristas norte-americanas. No exato dia em que os aviões destruíram as torres em New York, uma das meninas do noroeste, chegou na casa aos prantos, dizendo que a guerra havia começado. Só aí ligamos a TV, e juntas, em silêncio e perplexas vimos as cenas que durante séculos, o mundo não vai esquecer.

Sofri com os colegas capoeiras, que estavam fora de seu país em um momento como aquele. Mas, tudo se transformou em uma profunda reflexão. Convivi de perto, com a força da alma do povo norte americano. Uma delas da Califórnia, lembrou com tranqüilidade: “Tivemos um presidente que disse: a cada duzentos anos, o povo americano tem que fazer uma revolução”.

O fato de Obama já ter chegado tão próximo da presidência de seu povo, possivelmente, esta revolução está a caminho. Embora este conceito de revolução já seja para muitos um mito, depois da chegada do capitalismo; depois da revolução burguesa. Do processo irreversível de industrialização, as maquinas estão sempre a revolucionar as relações de produção e consequentemente sociais. O velho Marx há muito já nos disse: “tudo que é sólido, desmancha no ar”!

Sonho de King

Para o repórter do jornal espanhol, Obama é também a realização do sonho do líder negro Martin Luter King, de que um dia, seus filhos fossem julgados não pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. O mestiço chamado de negro, filho de um emigrante queniano e uma branca do Kansas, venceu porque sua inteligência emocional não é formada pela insistente memória da escravidão e da crueldade do racismo, mas pela busca de oportunidades e pela memória da coragem de sua nobre mãe, penso eu, puxando a brasa para a sardinha de nós mulheres.

O jovem advogado que já é vitorioso ao vencer o poderio dos Clintons, foi para Harvard, uma das melhores universidades, e tem “colhido com as duas mãos, sem um complexo aparente, as oportunidades que abundam em seu país.” Disse o jornalista John Carlin, que com este nome, deve ser também fruto desta mistura vinda da modernidade: John é um nome inglês e Carlin possivelmente italiano.

Esta matéria me fez refletir, sobre a forma enganada com que nossos lideres negros, tentam transplantar a realidade dos descendentes de escravos nortes americanos, arrastando-a para dentro de nossa realidade. Principalmente da realidade baiana, aonde o desenvolvimento do capitalismo chegou muito tempo depois que no sul do país.

O sul que recebeu imigrantes para as plantações de exportação, e para o início ao processo de industrialização, deixando os descendentes de escravos a própria sorte, como nos mostra Florestam Fernandes em seu fundamental texto de 1968, Relação de Raça no Brasil: Realidade e Mito: “... Pode-se verificar como este mecanismo se manifestava em cidades como São Salvador, Recife ou Rio de Janeiro, nas quais as populações negras e principalmente, mestiças logravam a aquisição de um nicho relativamente vantajoso na organização social e econômica daquelas comunidades.”.

O genial Florestan, também fruto de uma mistura de “raças”, (porque raças não existem), descreve o quanto a vida dos ex-escravos da Princesa Isabel, em São Paulo, continuou dramática, pelo fato de não serem absolvidos e preparados para a vida de libertos e assalariados. Sendo rapidamente substituídos pelos imigrantes. Ficando os homens negros libertos em degradante situação; sustentados pelas mulheres que se adaptaram aos salários e obrigações das empregadas domésticas.

Os afro-americanos, foram objetos de estudo do escritor catedrático negro Shelby Steele, que há quase vinte anos escreveu “O Conteúdo de Nosso Caráter”, que deveria ser estudado por nossos lideres afro-brasileiros, que cometem o equivoco de trazer para nós as dores e estratégias dos descendentes de escravos norte americanos, dos quais Obama não faz parte.

“Steele fala da “carga perigosa” que representa a memória histórica da opressão e da condição mental “defensiva e guerreira” que ela gera. O movimento em direção ao passado é tão irresistível que as oportunidades que alguém tem no presente se tornam invisíveis”. Escreve John, mas deixa claro também, a obviedade da continuação de sinais importantes de racismo no país de Obama; e esta obviedade sim, pode ser transplantada para o Brasil, quando insiste em tapar o sol com a peneira ao tentar esconder com palavras o racismo em nossa sociedade.

Mas, como evoluímos, mesmo que não queiramos (Ave Maria!) existem sim muitos lideres negros baianos, que têm também esta visão contemporânea de Obama. Lembro-me de um evento para homenagear mestres de capoeira, organizado pela CUT e patrocinado pelo Sindicato dos Químicos e Petroleiros, em que a mestra angoleira Janja, disse em seu discurso: “A questão do racismo em nossa sociedade, é de toda ela, brancos e negros, é do conjunto da sociedade.”

Por isto entendo Obama, quando ele, na presença de milhares de pessoas em um estádio, e para as câmaras de TV, disse, com suas palavras, que aqueles negros que esperavam dele esta memória da escravidão, esta dor nunca superada que os levam para trás, para um baixo desempenho nas escolas, para alto índice de doenças cardíacas e uma constante baixa-estima; não para o futuro, que estes, não precisavam votar nele. Barack em toda sua campanha, está deixando claro: quer ser o presidente de todo o povo americano, negros, brancos, oriental-descendentes e hispânico-descendentes".



Lucia Correia Lima é jornalista, fotográfica e roteirista. Esta escrevendo o livro Mandinga em Manhattan, um prêmio do Ministério da Cultura e Fundação Gregório de Mattos, com patrocínio da Petrobras, que é uma continuação do documentário de sua autoria, com o mesmo título, selecionado pelo DOCTC, da Fundação Padre Anchieta, Minc e Irdeb.

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