O telefone toca, ela atende sonolenta: 2h da manhã. Será que morreu alguém e estão ligando prá avisar?
Atende ansiosa. Do outro lado da linha uma voz conhecida. Antonio! exclama surpresa e conformada. O que aconteceu?
Dez anos que não se viam desde que o romance acabara, e ele se mudara para fora do país. Mas, de vez em quando, ele a acordava de madrugada para contar as novidades Quando casou, quando teve filhos, separou, quando se apaixonou mais uma vez, mais outra, e mais outra, para falar dos filhos, dos projetos, do carro novo. Perguntar, curioso, se tinha alguém com ela na cama, se estava apaixonada, etc, etc e etc. Invariavelmente, ela não respondia, e, condescendente, ouvia o que ele queria dizer, bocejando, até não agüentar de sono: "Vamos dormir? Boa noite, ou melhor, Bom Dia” dizia levemente irônica antes de desligar o telefone.
Desta vez, ele ligara para dizer que estava indo passar uns dias em Salvador, se ela podia pegá-lo no aeroporto, queria vê-la, conversar com ela. “Vou estar trabalhando. Mas também quero vê-lo”. No dia seguinte, o encontro no Pelourinho renovado, totalmente diferente do bas-fond que adoravam quando estudantes, uma ruína infecta onde proliferavam boêmios e marginais...
Vinho tinto, suave para ela, palavras, histórias, risos, lembranças. ”Não sei onde eu estava com a cabeça quando ia atrás de suas idéias malucas. Lembra quando fomos parar no meio do sertão de Andaraí, numa estrada de barro, sol a pino, calor de 40 graus? Não passava ônibus; não passava nada; pensei que fosse morrer no meio de cactus, poeira e serpentes venenosas... A viagem para a Argentina escondido dos pais dela, os sustos, os amigos - os dele e os dela que não se entendiam- o fusquinha verde de Margarida, sua maior cúmplice, e a culpa, a terrível culpa pelas mentiras.
-Tive tanto remorso. Acho que foi por isso que nossos filmes velaram. Que droga, não é? Ir a Bariloche, viajar de trem pela Patagônia, e atravessar o Estreito de Magalhães sem uma foto sequer....
- Temos a foto de lambe-lambe em frente à Casa Rosada, esqueceu?
- E aqueles caras saídos não sei de onde que nos levaram para passear nas montanhas de Ushuaia? Que maluquice a nossa! Eles podiam ter me estuprado, nos roubado e nosmatado. Nossos corpos poderiam estar enterrados na neve até hoje. Você me fez correr muitos riscos”... - Nós éramos muito jovens e você se divertia.
- Naquela época eu não tinha medo.
- Nem que eu morresse na Terra do Fogo?
- Tive. Lá não havia consulado. Como eu poderia transportar seu corpo para Salvador?
- Se eu tivesse morrido você sofreria?
- Depois. Primeiro teria que trasladar seu corpo.
Mais risos, mitos compartilhados, Sarte, Simone de Beauvoir, Marcel Camus,Victor Hugo, os franceses... -O que você está lendo agora? ele pergunta.
- Sydney Sheldon, responde antegozando a crítica que não vem. Ele a olha placidamente e diz: “Você continua a mesma”.
Fica decepcionada com a resignação dele. Talvez ela estivesse ficando muito previsível.
Ele não acreditava mais no Nada.
Ela também não. Isso mudava Tudo.
Agora, eles acreditavam em coisas diferentes.
No caminho para o hotel mais conversa, a paixão, as brigas, os términos, as voltas, o adeus definitivo.
-Por que a gente não deu certo?
-Você era muito galinha.
-Você devia ter lutado mais por mim, reclama.
-Você passou da conta.
- Você é muito dura.
-Você mentia.
-Todos os homens mentem.
- Eu sei. Mas, a gente cansa de fingir que acredita.
- Quer subir?, ele pergunta .
- Não. Vou para casa.
- Antes de voltar quero fazer um passeio, rever a cidade... Vem comigo?
- Vou. Me ligue.. .
Se olham com afeto.
- Nós fomos felizes juntos, não fomos?
- Acho que sim, ela responde.
Nunca tinha pensado nisso antes, mas era verdade.
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